Para ler

PARA LER "AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA"
De Eduardo Galeano, 1971
Por Afonso de Sousa

Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu, em 1940. Por suas posições políticas, acabou exilado na Argentina e na Espanha. Suas obras já foram traduzidas para mais de vinte idiomas. Publicou mais de 35 livros tratando de questões complexas, como política e economia, até assuntos cotidianos como futebol. Em 2001, foi nomeado doutor honoris causa pela Universidade de Havana.

A obra das “Veias Abertas” surge num contexto político muito importante. As décadas de 60 e 70 representam um momento em que muitas personalidades, assim como o próprio Eduardo Galeano, sentiram a necessidade de denunciar a vinculação direta entre o imperialismo e as mazelas políticas e sociais na América Latina.

Trata-se de um contexto onde a América Latina, invadida agora também pelos meios de comunicação de massas, necessitava levantar suas vozes, para resistir às versões oficiais sobre o passado e o presente. Foram anos que não podem ser simplificados apenas na denominação “guerra-fria”. Bem mais que isso, foram anos que mostraram a incapacidade das ditaduras de impor sua hegemonia cultural, política e até militar. Anos de contestações e inquietudes.

Fora da América Latina, estavam iniciando os protesto contra a invasão do Vietnã. No continente, da Argentina ao México, muitas guerrilhas (Che Guevara morre em 67 na Bolívia); a igreja, em centenas de comunidades adotando um caráter popular contestador; as ligas camponesas tornando-se Movimento Sem Terra; movimento operário, em vários países, ainda livre da degeneração burocrática; movimento estudantil com capacidade de se organizar na clandestinidade e, ao mesmo tempo, ser de massas. Foram muitas as frentes de contestação.

Galeano afirma, no pósfacio de abril de 1978: “Este livro havia sido escrito para conversar com o pessoal. Um autor não especializado dirigia-se a um público não especializado, com a intenção de divulgar certos fatos que a história oficial, história contada pelos vencedores esconde ou mente”. Certamente, é um livro-manifesto. Uma arma teórica. Evidentemente, Galeano não é um autor “não especializado”. Seu texto não é um panfleto vulgar. Ao contrário, é um documento rico, capaz de lançar um panorama geral das contradições entre dominados e dominadores em 500 anos de América.

Seu estilo literário, de fácil entendimento e estética apurada e simples, aproximado de linguagem romântica, apresenta ao mesmo tempo, um desejo de falar a uma quantidade maior de pessoas, ou seja, para além da academia, bem como, romper com o rigor metodológico, que enquadraria sua obra, cerceando-a em muitos recursos.

Por fim, em todos os países da América Latina, a obra influenciou, de alguma forma, o entendimento das pessoas sobre a História do continente. Seja no discurso da “Unidade Popular” chilena (1973), passando por milhares de salas de aula e lutas políticas, chegando até o Fórum Social Mundial no Brasil (2002), “As Veias Abertas da América Latina” é considerado um dos mais importantes clássicos.

UM POUCO DAS VEIAS:

“Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder”

Galeano trata das viagens colonizadoras e da pilhagem promovida pelo processo colonizador. Aponta as responsabilidades dos agentes das metrópoles, como Colombo, Cortez, Vespúcio e Pizarro no processo genocida. De como se travou uma guerra desigual onde os colonizadores tinham como vantagem elementos como as armas de fogo, os cavalos, a arte da intriga e da traição e a fragilidade dos índios às doenças. Descreve a queda de lideranças como Montezuma e Atahualpa.

O autor afirma que a Metrópole, uma vez no controle, avança sobre as riquezas naturais, iniciando pelo ouro e a prata, elementos chave para a ascensão do capitalismo nos países centrais.

A extração mineradora levou à morte milhões de pessoas, pelas condições brutais de exploração escravista a que estavam submetidas. Cidades como Potosí na Bolívia e Ouro Preto e Tijuco no Brasil foram pilhadas até o limite, deixando como saldo final a pobreza e cadaveres (apenas em Potosí chegam a oito milhões de mortos).

Seja pelas condições de vida e trabalho ou pelos confrontos, a ampla maioria da população foi dizimada. Quando os colonizadores chegaram, moravam nas Américas de 70 a 90 milhões de pessoas, em 150 anos eram apenas 3,5 milhões.

A riqueza que permaneceu nessas cidades não gerou desenvolvimento econômico, uma vez estar lançada na construção de palacetes e demais luxuosidades para a elite local, aliada da metrópole e co-patrocinadora da extrema concentração de renda.

Sobre essa pilhagem: “Entre 1503 e 1660, chegaram ao porto de San Lúcar de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata.”(...) “Em meio século, levaram do México 5 bilhões de dólares” (neste último com destaque para Guanajuato e Zacatecas) tinham em Portugal e Espanha apenas sua porta de entrada na Europa, uma vez que o “sub-desenvolvimento” dessas duas nações canalizava a riqueza para as demais.

Galeano trata de como a Igreja se comportou no processo, com destaque para a forma como foram coniventes com a trajédia social e agentes de desconstrução da cultura tradicional dos povos.

O autor também explica, baseado em Marx e Mandel, como a rapina colonial vai ser decisiva na instituição do capitalismo e do seu desenho internacional de desenvolvimento desigual e combinado. Galeano explica como a partir da desorganização das três grandes civilizações: Incas, Maias e Astecas, surge uma estrutura que combina mercantilismo, feudalismo e escravidão, que possibilitou aos países imperialistas uma acumulação que extende sua dominação econômica até os dias atuais.

Na obra, percebe-se a exaltação da resistência indígena inicial, bem como os desdobramento das lutas antiimperialista passando por Túpac Amaru, Pela luta dos africanos escravizados (como em Palmares), por Sandino, Zapata, Simon Bolívar, pela revolução cubana. Comemora as vitórias, como as primeiras reformas agrárias no Uruguai e no México mas, sobretudo, lamenta derrotas, militares, com a mortes de milhões, e políticas, com exemplo do fracionamento da América espanhola em muitos territórios contra o desejo dos bolivarianos.

Galeano esclarece o elemento do cultivo da Cana de Açucar dentro das relações metrópole-colônia. Cita Augusto Cochin “A história de um grão de açúcar é toda uma lição de economia, de política e também de moral”, tratando de todas as consequencias do latifundio, da monocultura e do escravismo. O Nordeste, com sua desnutrição infantil, seria emblemático. Na sequencia, dá destaque aos cultivos de Borracha, Cacau, Algodão, Café, sempre atento aos dados sobre as péssimas condições de vida e alimentação dos povos que comercializam com as metrópoles e os países capitalistas centrais. Posteriormente, com preocupação semelhante, trata da industria têxtil.

Galeano descreve os processos econômicos e políticos da maioria dos países da América Latina: Venezuela, Guatemala, Honduras, Costa Rica, Panamá, Colômbia, Equador Nicarágua, El Salvador Barbados, Cuba, Haiti, Jamaica etc. Em muitos, o autor expôe experiências próprias, vividas por ele, combinadas com informações oficiais ou relatos.

Num determinado momento da narrativa (assim como na cronologia histórica), o autor passa a explicar o papel dos Estados Unidos, agora como país imperialista, dentro do contexto da América Latina, sobretudo depois da sua guerra de secessão. O país que não abriu mão do seu desenvolvimento frente aos europeus, agora seria o maior responsável pelas relações de opressão no continente. O Intervencionismo Norte Americano, e as relações entre o estado americano (com destaque para a marinha) e as empresas americanas (com destaque para a United Fruits e Standart Oil) é descrito com detalhes em um texto longo, do qual um relato, de um militar americano poderia resumir:

O comandante SmedIey D. Butler, que encabeçou muitas das expedições, resumia assimsua própria atividade, em 1935, já aposentado: “Passei 33 anos e 4 meses no serviço ativo,como membro da mais ágil força militar deste país: o Corpo de Infantaria da Marinha. Servi em todas as hierarquias, desde segundo tenente até general-de-divisão. E durante todo este período, passei a maior parte do tempo em funções de pistoleiro de primeira classe para os Grandes Negócios, para Wall Street e para os banqueiros. Em uma palavra, fui um pistoleiro do capitalismo... Assim, por exemplo, em 1914 ajudei a fazer com que o México, e em especial Tampico, se tornassem uma presa fácil para os interesses petrolíferos norte-americanos. Ajudei a fazer com que o Haiti e Cuba fossem lugares decentes para a cobrança de juros por parte do National City Bank... Em 1909-1912 ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional Brown Brothers. Em 1916, levei a luz à República Dominicana, em nome dos interesses açucareiros norte-americanos. Em 1903, ajudei a ‘pacificar’ Honduras em benefício das companhias frutíferas norte-americanas”

Ainda hoje (apresenta dados Eduardo Galeano) os EUA são dependentes dos minérios da AL, como salitre, cobre e zinco, que abastecem suas indústrias. Adquirem esses minérios a preços baixos, a partir de facilidades ofertadas indevidamente pelos dirigentes locais. Da mesma forma, o autor detalha os caminhos da disputa pelo petróleo, onde os EUA se lançam a todo o custo para controlar, com destaque para a grande produção Venezuelana.

Galeano descreve o fenômeno da proliferação dos golpes de estado e ditaduras por diversos países (como a de Somoza na Nicarágua) e denuncia como os gestores dos estados nacionais mantiveram relações promiscuas com o capital internacional e com a inteligência americana. Explica como as elites latinas (sonhando em parecer Paris e Londres em sua “belle époque”) sempre se contentaram em ser meras sócias menores das elites centrais, tanto do ponto de vista político como econômico. Levanta o papel dos meios de comunicação americanos que agiram sistematicamente a serviço dessas elites e contra a autodeterminação dos povos latinos (destaque para Associated Press e United Press).

O autor também trata das guerras, com destaque para a do Paraguai contra a aliança que contou com o Brasil e a do Paraguai contra a Bolívia, descrevendo onde os interesses imperialistam operaram em cada uma delas.

Por fim, Galeano apresenta a América Latina face ao imperialismo contemporêneo, levado à frente por organismos multilaterais como o FMI e o Banco Mundial (que justifica a miséria pelas taxas de natalidade), sustentado pelas relações desiguais de mercado, pelo monopólio, pelo controle do conhecimento ciêntifico e tecnológico, pelos empréstimos abusivos, pelo controle direto por parte de empresas de setores estratégicos, e pelo estabelecimento de areas de livre comércio que visam, de uma vez por todas, re-significar as fronteiras geográficas dos países a serviço do imperialismo.

NOTA:

A bibliografia utilizada pelo autor é vasta, contendo mais de quatrocentas citações de documentos oficiais, jornais, documentos de instituições, obras de história, literatura, geografia, teorias econômicas e sociais etc.

A maioria das obras estão escritas principalmente em três linguas: espanhol, inglês e português, com destaque entre os textos em português para os brasileiros como: Celso Furtado, Caio Prado Jr, Darcy Ribeiro, Rodolfo Teófilo, Rui facó, Octavio Ianni, Luciano Martins, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Gasparian, Josué de Castro e outros, que são citados ao longo da obra.

Do ponto de vista da fundamentação metodológica, entre os filosofos mais influentes, destaque para citações de obras de Karl Marx, bem como economistas marxistas como o belga Ernest Mandel.

De fato, embora boa parte de “veias abertas” ter sido escrito ensaísticamente, Galeano consultou as obras, e as citou fielmente, em todos os principais temas abordados. Prova disso é o fato de ter podido apresentar uma importante quantidade de dados especificos dos países, das culturas e dos momentos históricos.

Um destaque importante é o fato de Galeano buscar fontes diversas, trabalhar com material bastante variado, inclusive com informações até então pouco divulgadas.

MINHA HUMILDE OPINIÃO

“As Veias Abertas da América Latina” é uma obra singular, que dá voz e unidade ao conjunto dos oprimidos do continente. Sua crítica incentiva o sentimento de solidariedade entre os oprimidos de todo o mundo. No texto, a denuncia direta, clara e objetiva, fundamenta e elucida o crime bárbaro que marca nossa história. Quase todos os segmentos sociais históricamente subalternizados, por idade, etnia, gênero e classe, tem suas chagas apresentadas no texto. Todos os agentes e cúmplices do genocídio são devidamente denunciados.

Somente um apaixonado pela América Latica, como Galeano, então ainda jovem, poderia ter uma motivação tão forte para levar à frente o desafio de escrever um livro que aborda um tema tão vasto. Certamente, também muitos, ao ler esse clássico de nossa história, também se dispuseram a dar sua contribuição à luta que começou com a resistencia indígena, negra e popular. Luta que hoje abarca novos paradigmas, como o ambiental, pouco tocado no texto de 1971, que hoje pode ser considerado maior foco de contradições de um sistema (capitalismo) que, além de não saciar as necessidades mínimas da população, conduz a humanidade para o colapso global.

Hoje, a América Latina continua sendo o mesmo “barril de pólvoras” da década de 70. Embora muitos movimentos sociais tenham passado a utilizar métodos de pressão social menos violentos, os níveis elevados de concentração de renda e a deslegitimidade (ainda) dos estados, bem como a arrogância das elite ainda provoca uma sensação de que, a qualquer momento, seja em Chiapas ou La Paz, seja em frente ao Miraflores ou de volta ao Moneda, “o acerto de contas” pode acontecer. Nessa trajetória, os governos do consenso de Washington, tem sido sistematicamente derrotados e suas políticas desmoralizadas e, embora existam muitas limitações dos governos de esquerdas que os substiruem, como o de Evo Morales e Hugo Chaves, estes são a negação do imperialismo e a afirmação de novas relações internacionais. De qualquer modo, seja qual for o futuro, os valores de “As Vias Abertas da América Latina”, são atuais, são os valores de Martí, Bolivar e Che Guevara, pensamentos com foco na crítica, mas que vislumbram libertação.

PARA LER MAIS DE EDUARDO GALEANO:


Los días siguientes (1963)
China (1964)
Guatemala (1967)
Reportagens (1967)
Los fantasmas del día del léon y otros relatos (1967)
Su majestad el fútbol (1968)
As veias abertas de América Latina (1971)
Siete imágenes de Bolivia (1971)
Violencía y enajenación (1971)
Crónicas latinoamericanas (1972)
Vagamundo (1973)
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Conversaciones con Raimón (1977)
Días y noches de amor y de guerra (1978)
La piedra arde (1980)
Voces de nuestro tiempo (1981)
Memória do fogo (1982-1986)
Aventuras de los jóvenes dioses (1984)
Ventana sobre Sandino (1985)
Contraseña (1985)
El descubrimiento de América que todavía no fue y otros escritos (1986)
El tigre azul y otros artículos (1988)
Entrevistas y artículos (1962-1987) (1988)
O Livro dos Abraços (1989)
Nós Dizemos Não (1989)
América Latina para entenderte mejor (1990)
Palabras: antología personal (1990)
An Uncertain Grace com Fred Ritchin, fotos de Sebastião Salgado (1990)
Ser como ellos y otros artículos (1992)
Amares (1993)
Las palabas andantes (1993)
úselo y tírelo (1994)
O futebol de sol a sombra (1995)
Bocas del Tiempo (2004)
O Teatro do Bem e do Mal (2002)